terça-feira, 4 de novembro de 2008

A liberdade de ver os outros

Estimados,

hoje convido-os a leitura de um texto espetacular. Pelo menos ao meu ver. O texto é de David Foster Wallace. Foi o discurso da formatura de sua turma na faculdade. Como é grande (duas páginas e meia no Word), passo o link onde a revista Piauí postou. O título do texto é "A liberdade ver os outros".

O interessante - e fundamental! - é que, aos 46 anos, ele se matou enforcando-se. E justo neste discursso ele fala sobre a morte e sobre o desespero que as pessoas passam pela vida. Mas em nenhum momento falou sobre o dele. Pelo contrário.

Enviei esse texto por e-mail a uma pessoa que amo muito (essas últimas duas palavras poderiam ser dadas com inútil ao post, mas não para mim) e ela me respondeu assim:

"Legal, Tico[um carinhoso apelido que levo há algum tempo].
Tem o grande mérito de ser um alerta para todos. Mas parece que foi mesmo um grito de desespero, de quem passou do ponto e já não podia mais voltar. O suicídio foi anunciado. A Verdade (com V maíusculo) sem a perspectiva da eternidade leva a um beco sem saída, não tem sentido que satisfassa.
Beijos"

'iQue fuerte!', diria algum espanhol.

De fato. Fortíssimo!

Desde que li esse texto, uso-o como apoio, entre outros, para um post (talvez não um post já que, pelo jeito, vai ficar um pouco extenso. Também por isso a minha demora em postar aqui no blog) sobre 'A consciência'. Lendo assim o título "A consciência" pode parecer um pouco sombrio e até assustador (haha), mas não direi nada do que o senhor não saiba.

Mas voltando ao texto de Wallace, transcrevo uma situação colocada por ele. Analisemos. É um pouco extenso, mas, por favor, leiam! Não irão se arrepender.

Você acordou de manhã, foi para seu prestigiado emprego, suou a camisa por nove ou dez horas e, ao final do dia, está cansado, estressado, e tudo que deseja é chegar em casa, comer um bom prato de comida, talvez relaxar por umas horas, e depois ir para cama, porque terá de acordar cedo e fazer tudo de novo. Mas aí lembra que não tem comida na geladeira. Você não teve tempo de fazer compras naquela semana, e agora precisa entrar no carro e ir ao supermercado. Nesse final de dia, o trânsito está uma lástima. Quando você finalmente chega lá, o supermercado está lotado, horrivelmente iluminado com lâmpadas fluorescentes e impregnado de uma música ambiente de matar. É o último lugar do mundo onde você gostaria de estar, mas não dá para entrar e sair rapidinho: é preciso percorrer todos aqueles corredores superiluminados para encontrar o que procura, e manobrar seu carrinho de compras de rodinhas emperradas entre todas aquelas outras pessoas cansadas e apressadas com seus próprios carrinhos de compras. E, claro, há também aqueles idosos que não saem da frente, e as pessoas desnorteadas, e os adolescentes hiperativos que bloqueiam o corredor, e você tem que ranger os dentes, tentar ser educado, e pedir licença para que o deixem passar. Por fim, com todos os suprimentos no carrinho, percebe que, como não há caixas suficientes funcionando, a fila é imensa, o que é absurdo e irritante, mas você não pode descarregar toda a fúria na pobre da caixa que está à beira de um ataque de nervos. De qualquer modo, você acaba chegando à caixa, paga por sua comida e espera até que o cheque ou o cartão seja autenticado pela máquina, e depois ouve um “boa noite, volte sempre” numa voz que tem o som absoluto da morte. Na volta para casa, o trânsito está lento, pesado etc. e tal. É num momento corriqueiro e desprezível como esse que emerge a questão fundamental da escolha. O engarrafamento, os corredores lotados e as longas filas no supermercado me dão tempo de pensar. Se eu não tomar uma decisão consciente sobre como pensar a situação, ficarei irritado cada vez que for comprar comida, porque minha configuração padrão me leva a pensar que situações assim dizem respeito a mim, a minha fome, minha fadiga, meu desejo de chegar logo em casa. Parecerá sempre que as outras pessoas não passam de estorvos. E quem são elas, aliás? Quão repulsiva é a maioria, quão bovinas, e inexpressivas e desumanas parecem ser as da fila da caixa, quão enervantes e rudes as que falam alto nos celulares. Também posso passar o tempo no congestionamento zangado e indignado com todas essas vans, e utilitários e caminhões enormes e estúpidos, bloqueando as pistas, queimando seus imensos tanques de gasolina, egoístas e perdulários. Posso me aborrecer com os adesivos patrióticos ou religiosos, que sempre parecem estar nos automóveis mais potentes, dirigidos pelos motoristas mais feios, desatenciosos e agressivos, que costumam falar no celular enquanto fecham os outros, só para avançar uns 20 metros idiotas no engarrafamento. Ou posso me deter sobre como os filhos dos nossos filhos nos desprezarão por desperdiçarmos todo o combustível do futuro, e provavelmente estragarmos o clima, e quão mal-acostumados e estúpidos e repugnantes todos nós somos, e como tudo isso é simplesmente pavoroso etc. e tal. Se opto conscientemente por seguir essa linha de pensamento, ótimo, muitos de nós somos assim – só que pensar dessa maneira tende a ser tão automático que sequer precisa ser uma opção. Ela deriva da minha configuração padrão. Mas existem outras formas de pensar. Posso, por exemplo, me forçar a aceitar a possibilidade de que os outros na fila do supermercado estão tão entediados e frustrados quanto eu, e, no cômputo geral, algumas dessas pessoas provavelmente têm vidas bem mais difíceis, tediosas ou dolorosas do que eu. Fazer isso é difícil, requer força de vontade e empenho mental. Se vocês forem como eu, alguns dias não conseguirão fazê-lo, ou simplesmente não estarão a fim. Mas, na maioria dos dias, se estiverem atentos o bastante para escolher, poderão preferir olhar melhor para essa mulher gorducha, inexpressiva e estressada que acabou de berrar com a filhinha na fila da caixa. Talvez ela não seja habitualmente assim. Talvez ela tenha passado as três últimas noites em claro, segurando a mão do marido que está morrendo. Ou talvez essa mulher seja a funcionária mal remunerada do Departamento de Trânsito que, ontem mesmo, por meio de um pequeno gesto de bondade burocrática, ajudou algum conhecido seu a resolver um problema insolúvel de documentação.
Claro que nada disso é provável, mas tampouco é impossível. Tudo depende do que vocês queiram levar em conta. Se estiverem automaticamente convictos de conhecerem toda a realidade, vocês, assim como eu, não levarão em conta possibilidades que não sejam inúteis e irritantes. Mas, se vocês aprenderam como pensar, saberão que têm outras opções. Está ao alcance de vocês vivenciarem uma situação “inferno do consumidor” não apenas como significativa, mas como iluminada pela mesma força que acendeu as estrelas.

O bom de pegar textos assim é que eles dispensam comentários. São riquíssimos!

Para quem vive em São Paulo, como eu, não é difícil de imaginar a situação. Eu tenho a mamãe que não deixa a comida faltar, mas o termo "não tem comida na geladeira" pode ser muito bem substituido por "pegar a filha na escola", "passar na casa de um amigo para ajudá-lo a estudar", "comprar pão", "devolver o filme na locadora" e assim vai.

A todo momento somos exigidos de algum modo. Às vezes por coisas simples, outras por grandes dificuldades. O importante é jamais acharmos que somos as vítimas da história e que os outros estão conspirando contra nós.

Sempre achamos que a vida dos outros é moleza e a nossa um osso duro de roer.

Um dia um amigo meu me falou em tom de brincadeira, mas guardei a expressão: "Você só vê as pingas que eu tomo, mas meus capotes não!"

De fato. Pimenta no olho do outro é colírio!

Não tenho muito o que acrescentar ao texto do Wallace, vale a pena ler outra vez. E outra.

Um abraço!

@Thiago Vendramini

Um comentário:

Paulo, Gutão para os íntimos disse...

Nossa realmente excelente o texto.
Para parar e pensar. Lembra um pouco o post "Graaande Edson" não lembra?
abraço